Úmido, Camila Bardehle

HERMES ARTES VISUAIS
São Paulo . SP

Camila Bardehle - Residência Hermes Artes Visuais


Sopro úmido

 

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

A flor e a náusea, Carlos Drummond de Andrade

 

A existência do mundo não é um

fato de ordem lógica: é uma questão pneumatológica. Só o sopro

pode tocar e experimentar o mundo, dar existência a ele. O mundo só pode ser respirado.

A vida das plantas, Emanuele Coccia

 

 

Em outubro de 2019, o Chile revelou a crise de um sistema e de um regime. As ruas de diferentes cidades do país foram tomadas por corpos que se manifestaram contra o modelo neoliberal implementado há mais de 40 anos, durante a ditadura de Pinochet, e não questionado no período de transição à democracia. Um modelo até hoje vigente, que defende privatizações, reformas trabalhistas e redução do gasto público e do papel do Estado em áreas como saúde e educação.

 

Para expressar a tomada de consciência e reação da população diante da desigualdade, dos abusos e maus tratos econômicos e sociais resultantes o levante do ano passado tomou como lema a frase “o Chile acordou”. Neste contexto, foi fundamental estar junto e montar uma “assembleia de corpos”, corpos desobedientes que respiraram e conspiraram de maneira compassada. Com a eclosão do covid-19, o espaço público foi completamente esvaziado e reocupado pela força militar, responsável por monitorar o cumprimento das medidas de saúde e, consequentemente, por controlar os corpos. Ao mesmo tempo que a pandemia exacerbou a condição desigual que os motins denunciavam, significou uma oportunidade para apagar as memórias e vestígios da insubordinação social nas cidades e muros do país.

 

Foi em meio a isso que a artista chilena Camila Bardehle deixou Valparaíso para passar uma temporada em residência em São Paulo. No Brasil, a situação era outra. O espaço público, também cenário de disputa, entre outras manifestações, em 2013, foi palco dos protestos contra o aumento das tarifas nos transportes públicos —similares ao estopim da revolta chilena de 2019—, em 2015, dos levantes feministas e dos estudantes secundaristas, que ocuparam escolas contra a reorganização da rede de ensino e, em 2018, em consequência do assassinado da vereadora Marielle Franco, que segue impune. Por outro lado, no mesmo período, as ruas do país foram também tingidas de verde e amarelo pelo movimento “Vem para rua”, defensor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e, em grande parte, apoiador da candidatura do atual presidente Jair Bolsonaro.

 

Desde então, o espaço público brasileiro representa o lugar de encontro da polarização. Com a chegada da pandemia não foi diferente. Diante da negligencia do governo federal, uma parte da população —que tinha condições para— decidiu se autoconfinar, esvaziando as ruas e contrariando as mensagens do presidente. Atualmente, os corpos voltam aos poucos a ocupar e reivindicar o ambiente coletivo de encontro e de protesto.

 

É neste lugar que Camila propõe um gesto simples, de desobediência e, também, de pedido de socorro. Sua prática artística está atravessada pelos anos que viveu na Terra do Fogo chilena, uma paisagem natural de extremos e de imersão. Além da onipresença da natureza em seu trabalho —a partir de sua escuta multissensorial, de sua investigação e defesa—, também permeiam suas pesquisas e obras a docência e o trabalho em comunidade desde uma ótica feminista e horizontal.

 

Sua primeira impressão ao chegar em São Paulo, onde esteve outras vezes, foi corporal, háptica e visual: a predominância do cinza e a ausência do verde e, por outro lado, a sensação úmida em comparação com a secura de Valparaíso. Nos dias na cidade, visitou praças e parques, entre eles, o Trianon, um resquício de Mata Atlântica em pleno centro, e descobriu figuras praticamente desconhecidas, como Mina Klabin Warchavchik, paisagista pioneira no uso de espécies autóctones, responsável pelo jardim da Casa Moderna da Rua Santa Cruz.

 

O exercício de percorrer e experimentar São Paulo na pele, depois de tanto tempo de isolamento e contato limitado, foi em si uma obra. Nesta apresentação de parte do seu processo de residência no Hermes, Camila nos convida a acompanhar sua ação e como ela ocupar a cidade com lambe-lambes, cartazes umedecidos, em tamanho A1. A imagem geométrica de uma natureza desfocada cobre os muros e suas várias camadas e texturas e chama atenção para o verde que resiste em meio à poluição e à aspereza urbana. Essa janela, que respira e transpira, nos transporta para outra paisagem e nos coloca diante do binômio que resistimos em superar, cultura e natureza. É uma janela que não deixa de ser uma lembrança e um alerta da situação atual das nossas florestas e matas, e daqueles que nelas vivem, em risco constante de extinção. Apesar de tudo, como diz Drummond, uma flor pode nascer no asfalto e ainda é possível soprar, resistir e fazer mundo.

 

 

Isabella Lenzi, dezembro de 2020


Text e Acompanhamento Crítico: Isabella Lenzi

Fotos: Vinicius Postiglione

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Marcelo Barros